Decomposição dos Corpos
Saturno devorando um filho, 1820-23.
Francisco Goya
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Decomposição
dos corpos, eis um rótulo efervescente. Este pequeno artigo propõe fazer uma
breve cartografia do corpo, do corpo capitalizado, ou como Baudrillard (2010)
“o mais belo objeto de consumo”. Este corpo que é previamente roubado,
desestruturado, e posteriormente realocado, manuseado de tal forma a adaptar-se
a sua mais nova função. Corpo-Função-Produção. Eis a fórmula, simples, fácil de
grudar em qualquer subjetividade.
Com
efeito, disto podemos observar uma época onde a prevalência é das identidades supra-pessoais e individualizantes onde
há o discurso de livre escolha[1]
sobre os seus corpos e de longas agendas com horários flexíveis à moda de desenhos
arquitetônicos agrupado em módulos, em que literalmente "o tudo se encaixa
com o todo", bem, nosso corpo não escapa desta lógica analítica que
separa, decapita, partes do corpo por todos os lugares (para interconectá-los
depois, é claro). O que nos parece disso, é que o corpo, tem-se convertido num
dócil portador de uma tendência epidêmica a ser triturado, tal como nos
desenhos arquitetônicos modulares[2],
como os nossos horários flexíveis, como
os aplicativos de nosso smartphone, etc.
A
publicidade, que é um bom exemplo, em suas mais variadas formas como jornais,
revistas, propagandas, comerciais e etc., como também as novas ciências da
imagem (TV, cinema, internet, outdoors
etc.) que utilizam o corpo como o principal modelo de reivindicação de todos os
seus tipos de produtos, serviços e atividades. “seja em que cultura for, o modo
de organização da relação ao corpo reflete o modo de organização da relação às
coisas e das relações sociais” (BAUDRILLARD, 2010, p. 168). O corpo é um
espetáculo. O corpo é uma estratégia de marketing. Como também, este corpo que
agora se tornou produto explicita operações dermoestéticas e academias de
ginástica, que analisam o corpo em partes, para poder
"potencializar", aumentar, diminuir ou intercambiar este corpo,
agora, estratificado. Técnicas/exercícios para hipertrofia de bíceps, tríceps,
glúteos... Aumentar aqui e ali. Diminuir aqui e ‘aculá’.
Alguém
poderia pensar que este novo e superficial culto somático testa a superação de
velhos prejuízos metafísicos. Para esta visão um tanto quanto otimista,
estaríamos antes de uma efetiva inversão sobre o platonismo e todas as visões
que consideravam o homem como um ente especial que o seu custo maior era de
deixar precisamente o corpo pelo caminho, caminho este que era seguido por
asceses, repressões sociais e/ou religiosas (em efeito, quanto maior, especial
e irredutível era o espirito, mais custava para "encaixá-lo" em uma
corporeidade que foi reduzida a recipiente de espírito, sempre transbordante,
insuficiente e prescindível, consumido pelo pecado). Deixando de lado este
otimismo, no entanto, parece mais favorável pensar o corpo de nosso tempo como
uma realização paroxística desta lógica arquitetônica que rege e governa com
mão de ferro e que, introjeta no
inconsciente social o slogan da flexibilidade ou da livre circulação (a
exemplo, podemos citar fórmulas tidas como “revolucionárias” tal como ready-made (corrente artística que eleva
objetos, antes industrializados, a peças de arte), self-service (estratégia econômica, onde o próprio cliente,
coloca-se na posição de empregado, fornecendo a si próprio os produtos/serviços
de determinada empresa), plug-and-play (conectar
e usar)... Tornando-o assim objeto de uma politica que somente o submete a
converter este corpo em um "ente, entre, entes", se não, de forma
mais especifica, em um "módulo entre módulos", “estratos entre
estratos”, “peças entre peças”, etc.
De algum modo, o corpo humano tem se visto arrastado por esta epidêmica mentalidade de valores mobiliários, modulares, que "corta" a matéria dividindo-a em peças modulares menores capazes de se combinar e se intercambiar entre si, encaixando-se umas com as outras e com o máximo de flexibilidade possível. Móveis, restaurantes de comida rápida, ordenadores, como também empregos, horários e casas se regem por esta lógica modular e compartimentada em que sempre é possível 'adicionar mais um acessório' e levar a cabo uma ‘nova atividade’, uma ‘nova função’. Estamos gradualmente sendo remodelados por todos os lugares: voos com escalas e conexões, menus com pratos adicionais, layouts de imprensa feita e organizada por seções e artigos divididos em blocos, módulos, catálogos divididos por moda, estação, idade, etc. Grades universitárias com créditos optativos e de "livres configurações”, bolsas sanduiches, videogames, smartphones com 'lojas' onde é possível baixar inúmeros outros aplicativos, sempre dando mais uma função plug-and-play ao smartphone. Curso de idiomas que garante nossa formação, uma vez que "nenhum bom currículo, está completo", como bem sabem os gurus em recursos humanos e psicólogos que arquitetam as entrevistas de trabalho a procura de um currículo mais adaptável/moldável fácil de ser desmontado e rearranjado a fim de preencher a cultura organizacional preexistente de uma empresa. E os corpos como bem sabem, também não está livre desta lógica trituradora: transplantes de órgãos, lista de espera para um rim, substituição de um nariz, dentes, lábios, seios novos; potencialização analítica/modular de músculos em academia. Sem aviso prévio nossos corpos são convertidos a um quebra-cabeça, ou qualquer outro objeto de entretenimento que seja montável e, claro, desmontável, sendo possível reconectar frente a novas exigências. O que parece ter acontecido é a impossíbilidade, precisamente, pensar numa vida íntegra ou num 'corpo sem órgãos[3]'. Viver sua potência em ato, sua força de existir. Corpos cujas afecções são coroadas de tristeza nos conduzindo para uma condição menor de afetar e ser afetado, aniquilando potencias.
Não é possível
separar o corpo da política. Toda pergunta acerca do corpo acaba podendo ser
respondida a cerca dos dispositivos de poder e saber, e se nosso trabalho é
perguntar-nos sobre qual é o tipo de corpo temos méritos em nosso mundo atual,
é quase impossível fazer ouvidos surdos ao que Michel Foucault (1926-1984) tem
a dizer a respeito. Para Foucault, o poder, diz Roberto Machado:
(...) intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder (2012; XII).
Revelando-nos
assim, a Microfísica do poder, isto
é, que o poder se exerce, se pratica, explicitamente sobre o corpo, o foco é
sobre a corporeidade do indivíduo. Este micropoder atua sobre o corpo por meio
de exercícios de adestramento, e agora de decomposição, sob os discursos de
verdade, efeitos de verdade. Em concreto, há uma passagem no livro Vigiar e Punir (1996) do Michel Foucault
que segue provocando, ressonando uma respiração mais vivida do que nunca em
nossos tempos:
Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. [...] o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia [...] pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e, no entanto continuar a ser de ordem física. [...] esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. (1996. p. 24-25)
Tecnologia
política do corpo e microfísica do poder que na atualidade seguem formatando um
corpo clínico, dividido mais do que nunca em órgãos; órgãos estes que se tornam
susceptíveis de serem tomados como objeto de todo um conjunto de ciências que
se localizam desde o final do século XVIII, nos hospitais, prisões e
universidades, porém também, hoje, e de forma ainda mais específica, em
academias, centros dermoestéticos e esferas da “tecnologia” como o marketing e
a publicidade. Viabilizando-se assim como procedimentos técnicos de poder “que
realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes,
comportamentos, hábitos, discursos” (MACHADO op. Cit., pag. XII). O resultado
seria um corpo para/em expansão perpétua, conquista suprema de uma época cujo
seu castigo é a sua qualidade de ser obliquo, lacunoso.
A pele imaculada distancia a imagem de falência do corpo. O ato de depositar pigmentos sob a pele (tatuar), de traspassá-la (piercing) ou de fazê-la adquirir um novo volume (implante) permite ao indivíduo incorporar, numa região do corpo real, a abstração, e dar à pele dessa região uma marca que possui o caráter de definitivo, o caráter (embora não verdadeiro) de não se transformar com o tempo (PIRES, 2003. p. 80)
Chegamos a um corpo onde
álgebras, matrizes, territórios, estratificações, módulos, sistemas
arquitetônicos, peças de quebra-cabeça interconectáveis, tudo isto, é hoje,
inerente ao corpo, e logo, de costas para a vida. Esta cartografia, pausa por
aqui, pretendendo provocar gagueiras intermináveis, e incessantes. Talvez seja
o momento, onde possamos colocar nossos olhos sob o outro lado da balança, e
enxergar a emergência deste corpo que é construído socialmente, politicamente.
Espreita que há muito tempo se vem comentando, e infelizmente, paradoxalmente,
vamos aos poucos, nos degradando.
REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições
70, 2010.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro:
Graal, 1988.
________________;
GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo
e esquizofrenia 3, vol.4. São Paulo: Ed. 34, 1995.
FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 14. ed.
Petrópolis: Vozes, 1996.
__________________;
MACHADO, Roberto (Organizador). Microfísica
do poder. 30. reimpr., 2012. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 2012.
__________________. Vigiar e punir: nascimento da
prisão. 14. ed. Petrópolis : Vozes, 1996.
PIRES, Beatriz
Ferreira. O corpo como suporte da arte.
São Paulo: Senac, p. 95, 2005.
[1]
Isto é, desde que a condição seja “de que este gosto coincida com o de todos”
(DELEUZE, 1988. p. 153).
[2]
Na arquitetura modular, a estrutura opera de forma independente e ao mesmo
tempo simultânea. Na arquitetura modular, os “bloco” são postos em um ambiente
em um piscar de olhos. Assim, este sistema é aplicado nas mais diversas áreas,
desde pré-fabricação de edifícios residenciais, comerciais, grandes obras, desenvolvendo
peças de decoração e até promovendo eventos e propagandas.
[3]Seria preciso dizer: vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação.
Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de
morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide” (DELEUZE; GUATTARI, 1996. p. 22).
Psicólogo, ator, dramaturgo e pesquisador.
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