O Fardo Metafísico



             A tradição de um pensamento metafísico ao logo de nossa história produziu, além de cansaço e desgaste, uma sensação de que nosso " ser" e " estar" no mundo faz parte de uma experiência enfadonha e supliciante .

No séc. VII a.C. sob a influência dos mistérios órficos, a religião homérica ,antes voltada para o culto externo dos deuses , agora se voltaria para uma preocupação com a alma humana e com a interioridade. Tem-se nesse momento a compreensão de que a alma é imortal, existe antes e depois da morte do corpo, portanto separa-se aqui o corpo da alma. A encarnação seria,então, uma forma de purificar essa alma de uma espécie de culpa originária. E quanto mais ela tomasse a consciência de sua potência divina, mais  se afastaria desse ciclo encarnatório (CHAUÍ,2002).Assim, o "ser" e "estar" no mundo estava voltado para a purificação, para o saber padecer, para o preparo para o futuro que seria a imortalidade.

O próprio pensamento filosófico de Pitágoras teve nesse período como um dos fundamentos: a crença na purificação da alma.No caso dele essa purificação viria pelo conhecimento ou pela vida contemplativa, com base no silêncio, isolamento e abstinência.


 A síntese dos ensinamentos de Pitágoras encontra-se num dito que lhe é atribuído pelos dexógrafos. Segundo estes, ele teria dito que aos Jogos Olímpicos comparecem três tipos de homens : os que vão para comerciar e ganhar a expensas de outros; os atletas, que vão para contemplar os torneios e avaliá-los . Assim também existem três tipos de almas: as cúpidas, presas às paixões ; as mundanas, presas às vaidades da fama e da glória ; e as sábias voltadas para contemplação.(CHAUÍ,2002,p.68)


Séculos à frente, com a consolidação do pensamento cristão, todas essas questões seriam aprofundadas. Mais do que nunca existia uma alma que era separada do copo e o próprio corpo como algo a ser riscado, dominado, adestrado, castigado . Existia , assim,uma vida presente , que deveria ser regrada por resiliência, provações, castrações e sofrimento. Almejando-se no futuro a conquista da salvação e da paz em uma prometida imortalidade divina e eterna.

A busca pela salvação eterna serviu, por exemplo, para legitimar a escravidão dos povos africanos , bem como todas as barbáries cometida contra os povos indígenas nos processos de conquista e colonização das Américas. Em suma, tudo que fugisse do modelo, do plano metafísico imposto, deveria ser domesticado. Não sendo domesticado, deveria ser demolido, extirpado, não deveria mais existir.

A partir do advento do iluminismo , há uma reconfiguração dos regimes de verdades. O homem  junto com  a ciência e a razão serão o centro das grandes decisões. Sob a promessa de desenvolvimento e do progresso, o pensamento científico se colocará como aquele que libertará o homem da trevas do medievo, que o tornará autônomo,racionalizante, coeso. Consequentemente, será esse o novo modelo idealizado a ser perseguido. A busca pelas luzes  produzirá, para além de uma hierarquia burocratizante do pensamento, uma gama de saberes dotados de determinado poder capaz de ditar quem possui legitimidade sobre o quê. Mais que isso, saberes dotados de poder capaz de produzir  determinados sujeitos(FOUCAULT,1979). Sujeitos estes que estarão encarando o presente como uma corrida para um estado futuro ideal  de plena racionalidade, consequentemente de liberdade. O pensamento científico se impõe, desta maneira, como um aprimoramento das técnicas de controle sobre a vida, o espaço e o tempo.

Atualmente, com as práticas e a consolidação do sistema capitalista. Constrói-se a imagem do homem de sucesso. Será esse o novo modelo a ser perseguido, almejado, desejado. O bom filho, bom estudante, bom profissional, com um bom salário,  bom pai/mãe de família, tudo isso, faz parte de um contexto de busca por excelência, que reduz a vida  a um ciclo de competitividade, desempenho e avaliação .  Dessa forma reduzimos, também, nossa existência a um produzir e consumir quase que ininterrupto. No esforço de alcançar esse  modelo ideal de homem contemporâneo.

O pensamento metafísico, seja sob uma perspectiva religiosa, filosófica, científica ou capitalista, produziu e continua produzindo um assalto do nosso olhar sobre o presente e o agora. Nos direcionando, quase sempre,para a busca de "modelos ideias" em uma perspectiva de futuro nebulosas. Dessa forma, promove-se uma despotência da vida. Na medida em que o  "ser" e " estar" no mundo é sempre um suplício, um desconforto, uma penitência, que rapidamente precisa ser transpassada na busca da salvação, da racionalidade, ou na satisfação do sucesso ou do consumo.

O presente  encarado não como algo a ser vivido e experienciado, mas sempre como um ponto de ultrapassagem para um "porvir", é de alguma forma negar a vida. É um convite a docilização dos corpos, um convite a sujeição do indivíduo. É negar o movimento da vida diante de uma perspectiva de linearidade, onde as coisas já estão postas e precisam apenas ser alcançadas. Talvez, seja esse fardo metafísico que dificulte a nossa relação com a instabilidade, com o acaso, com as descontinuidades da vida .

Milênios depois, e o homem contemporâneo de tantas sofisticadas tecnologias continua a se assustar com o devir. Da mesma forma que os primeiros filósofos se assustaram um dia. Enquanto tentavam dar uma explicação para o surgimento do mundo e das coisas através de suas cosmologias .




Referências :

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré- socráticos a Aristóteles. Vol.1. 2ed. rev. ampl. São Paulo: Companhia das Letras. 2002.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.



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