TEXTOS GAGOS: ARTEFILOSOFIA E DIFERENÇA
Armando Reverón, 1940
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*Texto escrito por Juliana Santos Monteiro Vieira
Reflete-se na perspectiva da filosofia da diferença a
necessidade de repensar os campos artísticos enquanto constituintes dos seres
na contemporaneidade. Exige-se que a arte subscreva discursos previamente
implementados, no encarceramento do fazer artístico como instrumentos de
comunicação. A insistência na separação dos campos de filosofia e arte são
questionamentos aqui trazidos para pensá-los como coexistentes e como
fundamentais na formação do estilo, pensando ao modo pré-socrático, sem as
distinções entre campos tão complementares. Essa tendência moderna corrobora
com os ideais que lhe perpassam, no entendimento do ser fragmentado e ao mesmo
tempo, uno.
Porque o pensamento
contemporâneo insiste em separar o que, de ponto de vista da razão e do
sentimento, não tem sentido como coabitação e como coexistência? Aliais, num certo
sentido, a arte contemporânea muitas vezes quis abolir as fronteiras entre Arte
e Filosofia (NOVALLIS, pg. 8, 2015).
Incorporando estas reflexões ao campo educacional é
de fundamental importância compreender os entraves que se delineiam na formação
do sujeito na Escola, instituição fundamentalmente moderna criada com objetivos
claros de dominação e vigilância, em nome de um suposto progresso, na recusa
das formas artísticas de expressão. Nessa perspectiva, a meta de ensinar e
educar como espelho destes ideais não permite ao sujeito enxergar a arte como
possibilidade de reinvenção, distinguindo objetos considerados ‘arte/não arte’
e elaborando teorias para legitimar e dar materialidade a estas normatizações.
O estilo em Deleuze não é tratado como algo personificado,
como um operador de identidade. Não se configura como estratégia normativa
discriminando um padrão de menor ou maior. O estilo não depende de uma
epistemologia política que atende a padrões unificantes de fabricação e
filiação reproduzidas em uma mesma lógica. O processo de individuação pensado
por Deleuze é não substancial, como acontecimento, hecceidade. Suas consequências transbordam o estilo e
transformam-se em literatura, linguística e em todos os campos artísticos. Sendo
assignificante, não inscreve-se em planos semânticos e nem discursivos.
Tais individuações
modais, do tipo cinco horas da tarde, definem-se como capacidades de afetar e
de ser afetado, isto é, como longitudes ou composições de relações de força,
relações complexas de lentidões e de velocidades, mas também como latitudes,
variações e potência e passagens de afectos (SAUVAGNARGUES, A. 2015, pg. 290).
Exige-se na perspectiva estética de existência, uma formação
de subjetividade que reflita sobre si e sobre o outro que se atente em captar e
restituir uma experiência sensível consigo e com o mundo, ou seja, refletir
sobre as construções de sentido e as maneiras de se afe(c)tar. Essa construção
de sentido é política e é objeto da estética (MORICEAU; PAES, 2014).
PRODUZIR GAGUEIRA: O DIALETO QUE
DEFORMA
Nos encontramos em um caminho de linguagem que nada
mais fala. Sentimentos e indagações que excedem o dicionário. Nesse sentido,
Deleuze propõe a pensar a gagueira como produção de linguagem afetiva, como
intensidade, construção do plano de imanência. Engendra e dá sentido a seu
encontro com outros autores, tomando a língua como operação estática,
homogênea, em suposto equilíbrio com a palavra. A gagueira seria para ele, um
desequilíbrio perpétuo que excede o poder da fala, um desvio do corriqueiro que
faz vibrar a língua numa variação contínua, em um ‘uso menor de uma língua
maior, tratando a língua como fluxo e não como código (DELEUZE, 1997).
Mecanismo da linguagem que vira
tique, em forma de hesitação diante da palavra, no abalo da linearidade. Torna
a criação linguística algo mais sensível. A palavra definitivamente está
associada a seu objeto elementar, ao fluxo linguístico que lhe carrega de
significados e símbolos. Entonação, inflexão, ondulação. Tropeço.
A gagueira pressupõe o deslocamento do estilo, da
sintaxe, um ato criativo. A repetição é condição do movimento. Pensada como
subversão, transgressão, incômodo perante a leis gramaticais. Escrita e
vocábulo potente refletido na fórmula: n-1. Para pensar multiplicidade é
necessário desqualificar o dualismo, o “ou”. Somos muitos, somos múltiplos,
somos “e”...neste sentido, gaguejamos.
O POETA GAGO
O poeta Manuel de Barros (1916-2014) é uma
importante referência para pensar uma estética ampla e a negação de restrições
das realidades linguísticas. Sua poesia era inventada, sem compromissos com o
“si mesmo”, tecendo críticas a noção de verdade e a ciência. Sua estética não
se prende uma linguagem coloquial, sua poética explica-se no anseio pela
inércia, em uma temporalidade singular, pelo abandono das virtualidades consideradas
“úteis” para a sociedade. Torna a palavra coisa manipulável, desconcertante,
frágil se está estática, no enfrentamento com os campos de representação. “O que queria era fazer brinquedos com as
palavras. Fazer coisas desúteis. Tudo o que use o abandono por dentro e por
fora.” (BARROS, M. 1996, pg. 07).
Tratar do desútil é tratar do íntimo, é despir a
significação e não se restringir a ela. É celebrar o nada, o insignificante, o
lúdico e o poético. É o estilo que busca o descaminho e que não se prende a
entendimentos automáticos introduzindo o desejo no campo da língua, colocando-a
em estado de “boom”, em uma gramática do desequilíbrio (DELEUZE,
1996).
Fazer a
língua do fora, do silêncio. Transforma a palavra em encontro, é estrangeiro em
seu próprio idioma, é criança em sua criação poética. Sua aparente falta de
lógica é atenuada por sua negação aos limites acerca do ser humano ou ser
coisa; “Choveu de noite até encostar em
mim. O rio deve estar mais gordo. Escutei um perfume de sol nas águas (...)Uma
violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde (BARROS, M. 1996, pg.
29).”
Lê a realidade através do poema, transfigura a
natureza e não gosta da ‘palavra acostumada’. Nega os ‘conhecimentos livrescos
e os fazimentos cerebrais’ (2002, pg. 81). Acompanhado de uma intensa
consciência crítica, afirma a demolição concreta da linguística, tornando-se
coisa, presente em sua própria poesia. Busca o lugar de início, a despalavra,
singulariza a arte e provoca o estranhamento.
Escrevo o idioleto
manuelês archaico (idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as
paredes e com as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias. O
despropósito é mais saudável do que o solene. (Para limpar das palavras alguma
solenidade – uso bosta). Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de cerebral
nos meus escritos é apenas uma vigilância para não cair na tentação de me achar
menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço
certidão (BARROS, M. pg. 43, 1996).
REFERÊNCIAS
BARROS,
M. Livro sobre nada. São Paulo: Ed. Record, 1996.
DELEUZE,
G. Crítica e clínica. Trad.Peter Pal Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997, 176 p.
(Coleção TRANS).
MALUFE,
A. C. Estilo e repetição: Deleuze e algumas poéticas contemporâneas. Cadernos
de Letras (UFRJ) n.26, 2010.
MORICEAU,
J.; PAES, I. Performances acadêmicas e experiência estética: um lugar ao sensível
na construção de sentido. In: FILHO, J. C.; MENDONÇA, C. M.; PICADO, B.
Experiência estética e performance. Salvador: EDUFBA, 2014
SAUVAGNARGUES,
A. Deleuze, cartografias do estilo: Assignificante, intensivo, impessoal. In:
FREITAS, R.; GARCIA, D.; IANNINI, G. Arte e Filosofia: Antologia de textos
estéticos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015, pg. 26-41.
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